Manipulação Cosmética

Henrique

Maio/Junho 2018

Luis Antonio Paludetti

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Luis Antonio Paludetti

Naquela manhã, Henrique levantou-se no horário de costume, sempre achando que era cedo demais para alguém sair da cama. Levantou-se, abriu a janela e viu que, diferentemente do que sempre acontecia naquela época do ano, a cidade não estava com o tempo carrancudo, e um céu completamente azul insistia em atravessar o espaço entre os prédios.

Embora não tivesse ido dormir tarde, sentia-se sonolento e, definitivamente, aquele não era um dia para sentir-se assim. Olhou para o criado-mudo ao lado da cama e o seu Sistema Pessoal de Manipulação de Medicamentos estava lá, pronto e à espera de sua solicitação. Tocou então o leitor biométrico do SISMA (como o sistema era carinhosamente chamado pelos usuários) e relatou que estava sentindo-se sonolento.

A máquina perguntou-lhe se a sonolência era por ele ter dormido tarde ou outro motivo e, como ele respondeu que era por outro motivo, a máquina silenciou e emitiu alguns ruídos e algumas luzes. Ele sabia que, embora as luzes fossem a parte perceptível do processo, a máquina já o estava diagnosticando, tentando delinear a natureza de sua sonolência. Após alguns segundos, a máquina dispensou três pequenos selos biocompatíveis impregnados de substâncias químicas que o ajudariam a sentir-se mais ativo e lhe explicou como utilizá-los.

– SISMA, disse ele, hoje tenho um grande encontro com uma pessoa que conheci nas redes sociais. Não sei se estarei pronto para o que pode acontecer, então, você poderia preparar alguns selos para garantir a minha vitalidade numa eventual relação sexual?

Como num passe de mágica, as luzes piscaram novamente e, da mesma forma que antes, a máquina dispensou dois selos com substâncias químicas e instruções para usar o selo azul.

– Ah, SISMA, depois do café da manhã vou treinar e preciso de alguns suplementos pré-treino e outros pós-treino, poderia prepará-los para mim?

Depois de algumas horas de treinamento, Henrique retornou para casa, ingeriu os selos para o pós-treino e vestiu-se para o encontro no parque. Antes de sair, porém, solicitou ao SISMA que lhe preparasse mais alguns selos de uso geral e um selo para esquecimento, caso fosse necessário.

Em todos os seus 40 anos de vida, Charlote nunca tinha encontrado alguém como ele. Ela tinha a impressão de que, realmente, ele a compreendia em suas necessidades mais profundas. Olhou para seu smartphone e percebeu que estava quase no horário de sair.

Em frente ao espelho, percebeu que algumas rugas marcavam-lhe o canto dos olhos, o que na sua idade era bem natural. Sentiu também um pouco de ansiedade sobre como seria este encontro pelo qual tanto aguardara e pensou que precisava garantir que seria atraente para ele. Olhou para a pequena máquina que ficava ao lado de seus perfumes e tocou em seu leitor biométrico. O SISMA imediatamente entrou em modo on-line e aguardou as instruções de Charlote:

– SISMA, preciso de algo para reduzir estas rugas nos cantos dos olhos, alguma coisa para deixar meus lábios um pouco mais carnudos e, um pouco de hormônios para garantir que eu esteja pronta para o que der e vier…

Como era de seu procedimento padrão, o SISMA piscou suas luzes alguns minutos, emitiu alguns ruídos e, após alguns segundos, liberou um selo vermelho para os lábios, um selo amarelo para as rugas e um selo lilás com os hormônios adequados. Charlote pegou os selos, aplicou-os nos locais apropriados e continuou se vestindo para o encontro. Antes de sair, como sempre fazia, pegou seus pertences e alguns selos extras que o SISMA sempre preparava para uso eventual.

No horário combinado, Charlote e Henrique se encontraram sob a marquise principal do parque da cidade. Entreolharam-se e perceberam que eram quem esperavam que fossem, exatamente como quando conversavam pelas redes sociais. Charlote sentiu-se um pouco tímida e, sem que Henrique percebesse, ingeriu um selo para reduzir um pouco a timidez. Começaram a conversar sobre suas vidas, sobre seus trabalhos. Sorriram, tomaram sorvete. Logo perceberam que possuíam grande afinidade.

Entretanto, algo lhes faltava naquele momento. Não entendiam bem ao certo, mas logo perceberam que haviam esquecido de pedir para o SISMA preparar selos para sentir a felicidade.

Um homem bem-vestido, limpo e saudável passava por ali, percebeu que estavam mexendo com selos e dirigiu-se até eles.

- Perdão. Será que não poderiam ajudar um pobre homem que não possui recursos para adquirir um SISMA?

Charlote e Henrique olharam para o mendigo e pensaram “Meu Deus, como alguém consegue viver sem um SISMA?”.

Entreolharam-se e, voltando-se para o mendigo, disseram-lhe que não tinham selos para lhe dar. Constrangidos com o fato e inconformados por terem se esquecido de pegar os selos da felicidade, perceberam que seu possível relacionamento havia ruído. A menos que fossem até o SISMA, não havia nada que podia ser feito para salvar aquele encontro.

Trocaram um olhar de tristeza e fizeram a única coisa que fazem as pessoas neste momento: deram as costas e cada um ingeriu um selo de esquecimento.

Este conto foi escrito no Dia do Uso Racional de Medicamentos.

É uma reflexão sobre a sociedade atual, sobre o que pode acontecer se não tomarmos cuidado, sobre estarmos nos transformado em uma sociedade de “drogados com prescrição”.



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