Manipulação Cosmética

Sem eira nem beira

Novembro/Dezembro 2016

Luis Antonio Paludetti

colunistas@tecnopress-editora.com.br

Luis Antonio Paludetti

ma das coisas mais interessantes nas redes sociais é a possibilidade de formação de grupos. Diferentemente das linhas do tempo (timelines) e das páginas (fanpages), os grupos têm menor interferência de anúncios aleatórios e quase nenhum anúncio pago – embora muitos grupos tenham sido criados e depois tomados por empresas que anunciam um sem número de serviços. Então, a melhor coisa de um grupo é o fato de ele ter foco em um determinado assunto ou segmento por ele representado.

Eu participo de alguns grupos relacionados à farmácia magistral e, recentemente, um aspecto chamou minha atenção: a frequência de perguntas sobre onde obter determinado insumo farmacêutico. Como eu sei que a maior parte das equipes de marketing dos fornecedores tem uma grande preocupação com a atualização constante de sua lista de produtos, passei a me perguntar o porquê disso.

Analisando os debates, os comentários e as respostas dos participantes dos grupos, identifiquei algo que pode ser preocupante: muitas matérias-primas não estão mais sendo importadas porque os medicamentos industrializados que as utilizam não tiveram seus registros renovados.

Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Pois é essa a pergunta que sempre me faço. Se uma substância de uso terapêutico é terapeuticamente válida, por que a sua importação deve estar condicionada à existência de um medicamento registrado no Brasil?

Vamos, então, às possíveis argumentações.

O primeiro argumento - bem-sabido - é que, ao longo da história, diversos países foram utilizados como verdadeiros campos para testes de substâncias em larga escala em seres humanos. Esses procedimentos já foram divulgados pela mídia e inspiraram filmes como O Jardineiro Fiel.

Por isso, impedir que substâncias sejam importadas sem o registro do medicamento no Brasil limita muito este procedimento. Quando combinado com o procedimento de obrigar que o registro de um medicamento só seja concedido no caso de o mesmo medicamento estar registrado previamente no país de origem, obtém-se um mecanismo de proteção extremamente resistente, o que impede que a população brasileira seja utilizada como “cobaia” em testes de medicamentos que ainda não foram aprovados, principalmente por países mais desenvolvidos que o Brasil. Obviamente, a regra não se aplica à importação para condução de estudos clínicos previamente aprovados pelos diversos níveis dos comitês e conselhos de ética em pesquisa clínica.

A meu ver, mesmo impossibilitando a manipulação do fármaco em farmácias, esta é uma argumentação válida, pois garante a segurança e o uso adequado de medicamentos.

O segundo argumento, também bem-sabido, é que o registro, a produção, a comercialização e a disponibilidade de medicamentos industrializados estão intimamente relacionados com interesses comerciais. Mesmo que um medicamento seja terapeuticamente válido, se ele deixar de ser comercialmente interessante para a indústria que o comercializa, esta empresa pode deixar de produzi-lo e não mais renovar seu registro.

Em uma condição normal, essa lacuna na terapêutica poderia ser facilmente preenchida pela manipulação do medicamento em questão em farmácias. Entretanto, como o registro não existe mais, a importação da substância ativa não é possível, o que inviabiliza a manipulação.

Isso é preocupante, pois o impedimento da importação sobrepõe o interesse comercial da indústria ao interesse terapêutico e à manutenção da saúde da população, o que nenhuma agência reguladora de qualquer país deveria permitir. Quem é um pouco mais “farmossauro” deve recordar que, há uns 20 anos, houve uma parada na produção de propranolol (que não era financeiramente interessante na época), e a única opção dos pacientes passou a ser as farmácias.

O terceiro argumento é que, quando não há mais interesse na renovação do registro de um medicamento, é porque este medicamento tornou-se terapeuticamente obsoleto, tendo sido suplantado por alternativas melhores. Assim, numa conjugação de interesses comerciais e terapêuticos, a indústria não renova o registro do medicamento antigo, pois pretende deixar à disposição do mercado apenas a nova opção, que lhe será mais lucrativa.

Não vejo problema nisso do ponto de vista comercial, mas, do ponto de vista terapêutico, isso pode não ser o melhor. Vejamos o caso do rofecoxibo. Em poucas palavras, foi alardeado como uma revolução mas revelou-se um problema. Quando os relatos de efeitos adversos se acumularam, levando às restrições impostas mundialmente, os médicos quase que imediatamente voltaram a adotar a geração anterior de fármacos. O raciocínio é que é melhor usar medicamentos antigos com efeitos colaterais conhecidos do que usar uma nova geração cujos efeitos ainda não são bem conhecidos, principalmente em nível de grandes populações.

Eu acredito que esta discussão vai longe. Concordo que discutir a validade terapêutica de medicamentos que não possuem registro no Brasil é coisa da maior seriedade. Mas não posso concordar que a importação de uma substância deva ser proibida simplesmente pelo fato de o registro ter sido expirado e não renovado. Isso é simplificar demais um assunto complexo e que merece uma melhor avaliação.

Substâncias que foram utilizadas terapeuticamente durante muitos anos não podem perder seu lugar no arsenal terapêutico apenas porque não têm mais interesse comercial. Não podem ser tratadas como se fossem um “sem eira nem beira”.

Ninguém ganha com isso. Pacientes perdem. Farmácias perdem. O sistema de saúde perde. E o Brasil também perde.



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