UPCYCLING

Erica Franquilino

Tudo se transforma

Potencial para ser grande

Caminho natural

Economia circular

Edição Temática Digital - Maio de 2021 - Nº 62 - Ano 16

 

 

Tudo se transforma

 

A bolsa personalizada que já foi um jeans surrado e as sobras que ressurgiram em um risoto delicioso são exemplos cotidianos de upcycling ou upcycle. A técnica de reaproveitamento está em consonância com o conceito de economia circular e consiste, em síntese, na elaboração de produtos inovadores a partir de resíduos que iriam para o lixo.

 

“Diferentemente da reciclagem, que produz um item de valor semelhante ao que foi ‘descartado’ com alto uso de energia, o objetivo do upcycling é produzir um artigo de maior valor agregado, com menor gasto de energia”, explica Daniele Vasconcelos, assistente técnica da High Chem.

 

A ideia é investir no aproveitamento máximo de materiais pré e pós-consumo, num processo vantajoso para a empresa que produz e para a que adquire os resíduos, uma vez que representam novas oportunidades de negócio. As novidades que chegam aos consumidores são expressões de sustentabilidade, criatividade e, em alguns casos, de exclusividade.

 

O termo “upcycling” foi usado pela primeira vez em 1994, pelo ambientalista alemão Reine Pilz, em referência à reutilização de materiais em áreas como moda e design. A popularização aconteceu a partir de 2002, com a publicação do livro Cradle to cradle: rethinking the way we make things (no Brasil, Cradle to cradle: criar e reciclar ilimitadamente), escrito pelo arquiteto norte-americano William McDonough em parceria com o químico Michael Braungart.

 

 

A indústria da moda, que está entre as mais poluentes do mundo, tem dedicado atenção especial ao upcycling. De acordo com um levantamento feito pela Fundação Ellen MacArthur, anualmente a indústria global da moda produz cerca de 53 milhões de toneladas de fibras têxteis. A maior parte de tudo isso (70%) tem como destino os aterros sanitários.

 

 

Uma das referências em upcycling nesse mercado é a marca norte-americana Reformation, criada por Yaya Aflalo. Na fabricação das peças, são utilizadas (além de tecidos sustentáveis) sobras da indústria têxtil e tecidos resultantes da desconstrução de roupas vintage.

 

 

A peti h, marca do grupo francês Hermès, recolhe todos os materiais que sobram da linha de produção da grife para transformá-los em objetos, como peças de decoração, acessórios, roupas, sapatos, carteiras e bolsas. As criações são produzidas como peças únicas ou edições limitadas.

 

A coleção-cápsula “Be Mindful”, lançada pela Louis Vuitton para a temporada inverno 2021, traz colares, braceletes, brincos, prendedores de cabelo, xales e lenços produzidos a partir de sobras de insumos de antigas coleções. Foram utilizados mais de 200 metros de tecido e 27 tipos de materiais para a elaboração dos artigos.

 

Dentre outros subprodutos, a brasileira Insecta Shoes utiliza plástico e algodão reciclados, borracha reaproveitada, peças de roupas usadas, tecidos de reúso e resíduos de produção que seriam jogados fora para a produção de calçados. A marca produz sapatos veganos, “sem abrir mão da estética”, informa.

 

As possibilidades são amplas e aplicáveis em vários setores, como ilustram as marcas Studio Bike Furniture Design e ecoBirdy. A primeira, norte-americana, produz móveis com partes de bicicletas e motocicletas. A belga ecoBirdy cria peças de mobiliário infantil a partir de brinquedos coletados em escolas, que são desmontados e encaminhados a um centro de reciclagem. Lá o plástico é processado de forma que não perca suas qualidades e não necessite de corantes ou resinas.

 

 

Potencial para ser grande

 

Os custos da economia global com desperdício e perdas de alimentos são superiores a US$ 940 bilhões por ano, de acordo com a Upcycled Foods Association. O processo de upcycling permite a reinserção de alimentos descartados na formulação de novos alimentos, que podem ter altos valores nutricionais.

 

Um exemplo recorrente no que diz respeito às soluções de reaproveitamento na indústria de alimentos é o de um grande fornecedor de tomates para o McDonald’s, na Holanda. As extremidades dos tomates, que não são utilizadas na produção dos sanduíches, eram descartadas. Para zerar o desperdício, os pedaços dos tomates viraram uma sopa, comercializada em embalagem transparente.

 

De acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), no Brasil são desperdiçados aproximadamente 23 milhões de toneladas de alimentos por ano. Há ainda a questão da rejeição aos alimentos considerados “feios”. Recentemente, pesquisadores da Universidade de Wageningen, na Holanda, desenvolveram uma sidra com maçãs que não atendiam ao padrão estético de algumas redes varejistas.

 

Alimentos “feios” são a base dos negócios da britânica Spare Fuit e da norte-americana The Ugly Company, que produzem snacks de frutas e legumes desidratados, em embalagens práticas e individuais. O último relatório de tendências da Whole Foods inclui a reciclagem de alimentos. Na era pós-covid, alimentos como cascas de frutas não serão relegados ao lixo: servirão para preparar pratos e snacks.

 

No início deste ano, a Danone North America anunciou a criação da Good Save, nova marca de iogurtes cuja produção utiliza partes que sobram das frutas e as que não são destinadas às prateleiras. Um selo nas embalagens do iogurte informará que a fruta utilizada teria sido desperdiçada.

 

Na indústria cosmética, uma das pioneiras em upcycling é a taiwanesa O’right. A empresa nasceu em 2006, com o objetivo de desenvolver produtos capilares e para o cuidado da pele a partir de resíduos agrícolas, como borra de café e raízes de goji berry. O reaproveitamento também está presente em algumas embalagens da marca, como as famílias Tree in the Bottle e Recoff ee Tree in the Bottle, no mercado desde 2014.

 

Depois que o consumidor utiliza o produto, ele pode plantar o frasco vazio no solo. No caso do Recoff ee Tree in the Bottle, o bioplástico é produzido graças à extração do óleo de café, oriundo da borra de pó de café usado em cafeterias. O produto, 100% biodegradável e sem adição de pigmentos, traz sementes de café na parte inferior. Dentro de um ano, em condições ideais, elas brotarão.

 

Daniele, da High Chem, cita como exemplo de upcycling a linha Baum da Shiseido, que traz madeira reciclada nas embalagens dos produtos. A empresa aproveita sobras de madeira do processo de fabricação de móveis da japonesa Karimoku Furniture. “Nós restauramos carvalhos de alta qualidade, dando-lhes uma nova missão, o que resulta em variações únicas e profundidades de grão e cor”, informa a Shiseido.

 

“Há marcas que usam esse tema como característica de identidade, como a UpCircle. Ela iniciou usando grãos de café de uma cafeteria no Reino Unido, que seriam jogados fora, como ‘ativos’ em seus produtos”, menciona.

 

Atualmente, a marca oferece produtos como esfoliantes formulados com café arábica – proveniente de cafeterias de Londres – e um sérum facial com água residual da tangerina verde, um subproduto da indústria de sucos. A composição do sérum também traz o extrato de caule de camomila, oriundo da indústria do chá.

 

O site da UpCircle destaca que “1/3 de todos os alimentos produzidos é desperdiçado. É uma das indústrias que mais desperdiça no mundo. Para empresas como nós, isso representa um grande número de ingredientes para fazer coisas melhores”.

 

 

Caminho natural

 

O Granlux AOX G3 ECO e o Celltice são ativos da High Chem provenientes da indústria madeireira. “Granlux AOX G3 ECO é produzido a partir de galhos de Picea abies, o pinheiro ‘abeto’. Os galhos não têm utilidade para a indústria. O que a empresa finlandesa Granula faz é extrair a substância presente nesses galhos, rica em lignanas”, explica Daniele. Lignanas compõem um grande grupo de polifenóis de baixo peso molecular encontrados em plantas, principalmente sementes, grãos inteiros e vegetais.

 

No caso do produto Celltice, a espécie utilizada é a Acer rubrum (red maple). Para o reaproveitamento de lascas descartadas pela indústria, a norte-americana Renmatix, desenvolveu o processo Super critical water process, que usa apenas água como solvente, para extrair as lignanas. “O processo foi o vencedor do Green Chemistry Challenge de 2015”, cita.

 

“Todas as plantas contêm lignanas, substâncias responsáveis por sua proteção, contra intempéries e microrganismos, por exemplo. Há diversas propriedades, de acordo com as espécies”, comenta.

 

“Testes feitos com o Granlux AOX G3 ECO mostram propriedades antioxidantes (no produto final e para a pele), antimicrobiana (inclusive contra caspa e acne), alta velocidade de reação (semelhante a vitaminas) e baixa toxicidade, sendo, portanto, um ativo multifuncional”, aponta.

 

No mercado internacional, o Granlux AOX G3 ECO integra as composições do Lumene Men 2 in 1 Body & Hair Wash, da linha Men Activate (Finlândia) e do shampoo antioxidante Evonia (Finlândia), que nutre, limpa profundamente, protege o couro cabeludo e promove o crescimento dos fios.

 

O Triple Action Jelly Exfoliator, produto da Trilogy (Nova Zelândia) que limpa suavemente as células mortas da pele, é formulado com extrato de Acer rubrum, espécie que dá origem ao Celltice e a outros ingredientes. O extrato também faz parte da composição do Wild Maple Leaves - Elastin Boost Cream, da Dr. Ruba Organics (Canadá).

 

“A AQIA oferece ao mercado a linha Rice, composta por derivados sustentáveis do arroz oriundos de resíduos da indústria arrozeira. Por meio de um processo de obtenção ambientalmente amigável, as cinzas geradas pela combustão da casca do arroz (utilizada para a geração de energia) dão origem a dois produtos: Rice Exfoliator e Rice Silk”, informa Mariana Zaroni, especialista de Marketing de Produto da empresa.

 

Rice Exfoliator - agente esfoliante e abrasivo natural composto por partículas homogêneas com granulometria ideal para uma esfoliação suave e eficiente, promovendo a remoção das células mortas da superfície da pele para uma renovação celular mais efetiva. É uma alternativa vegetal aos esfoliantes sintéticos.

 

Rice Silk - seda de arroz que age como um agente texturizante natural, promovendo melhora da textura da pele, toque seco e controle da oleosidade. O produto é obtido por meio de um moderno processo de micronização autógena, que permite baixas granulometrias com tamanho mais homogêneo de partículas. O ativo é uma alternativa às sílicas sintéticas.

 

 

No exterior, o Rice Silk faz parte das formulações da linha de produtos Consuelda (Alquiminath Laboratorios, Equador); de um creme para peles oleosas da linha Aphrodite (Green Era, Estados Unidos); do Pore Blur (Makeup Revolution, Rússia); e de um pó bronzeador lançado neste ano pela marca espanhola Identy.

 

 

Renata Cardoso, gerente de marketing da Assessa, aponta que a empresa é reconhecida internacionalmente por aplicar o conhecimento científico na criação de ingredientes sustentáveis e inovadores, desde a sua criação. “Primeira empresa no mundo a utilizar e exportar ingredientes cosméticos produzidos com algas marinhas tropicais, a Assessa se mantém fiel ao DNA de pioneirismo, desenvolvendo novas tecnologias em seus processos de produção”, diz.

 

Encontrar matérias-primas que fossem produtos de descarte de outros processos “e identificar no upcycling o perfil de sustentabilidade dos nossos produtos e o seu imenso benefício cosmético foi um caminho natural das pesquisas”, acrescenta. Atualmente, são destaques voltados a esse conceito os ativos Lisselini, Curvelini, Quattro e Sproutex.

 

Para a produção de Lisselini e Curvelini, são utilizados como matéria-prima resíduos de linhaça, também chamados de “cake press”, normalmente descartados após a prensagem das sementes para a obtenção do óleo. Apenas uma pequena parte é vendida como suplemento nutricional - rico em fibras - e para ração animal.

 

As fibras encontradas na entrecasca das sementes, as FISF (Flaxseed Internal Soluble Fibers), são parte importante da estrutura de suporte das paredes celulares. A parte central das sementes é rica em proteínas contendo Arginina, ácidos glutâmico e aspártico e outros aminoácidos essenciais.

 

“Esse resíduo que seria jogado fora é a matéria-prima desses dois campeões de vendas da Assessa, por suas propriedades regeneradoras e restauradoras das fibras capilares”, afirma. “Quattro é um produto para cabelos crespos que também segue o conceito de upcycling. Ele é produzido com rejeitos do processamento de sementes de chia (Salvia hispanica)”, completa.

 

A chia contém polissacarídeos formadores de filme, triglicerídeos ricos em ácidos graxos poli-insaturados e lipídios essenciais, que fornecem lubrificação e condicionamento. “A combinação de frações de sementes de chia, ceras líquidas, monoésteres de ácidos graxos de cadeia média e outros lipídios essenciais contribui para a formação de um filme adesivo à cutícula do cabelo, melhorando as propriedades de tensão-deformação das mechas”, explica.

 

Quattro é um produto elaborado para cabelos cacheados e crespos (tipos 3 e 4) que proporciona maciez, condicionamento e controle do frizz. “Além de evitar o descarte, colaborando para a redução do lixo industrial jogado na natureza, criamos um produto com benefícios para a saúde dos cabelos e que atende à demanda das pessoas que sofrem com o ressecamento natural desse tipo de cabelo”, menciona.

 

Na produção do suco do broto de trigo, utilizado como alimento funcional por seu elevado teor de sais minerais, polifenóis antioxidantes e vitaminas, apenas a primeira colheita obtida (por meio da prensagem dos brotos recém- germinados) é comercializada. Na colheita seguinte, o suco produzido é descartado para o consumo como bebida, por apresentar sabor extremamente amargo.

 

“Essa segunda brota, que seria descartada, é a matéria-prima para a fabricação do Sproutex. O sabor amargo é causado pela alta concentração de polifenóis, que têm ação antioxidante e de ativação celular”, informa. O ativo apresenta excelente atividade na inibição da degradação de colágeno e atua como estimulante do sistema imunológico, protegendo a pele contra a poluição e a radiação solar.

 

No mercado internacional, os ativos Lisselini, Curvelini e Quattro estão presentes, respectivamente, nas formulações dos produtos: Hair Radiance Keratin Spray (Espanha), Smoothing Serum (Itália) e Curly Hair Gel (África do Sul).

 

 

Economia circular

O conceito de economia circular propõe o aproveitamento inteligente dos recursos existentes no processo produtivo, com base no entendimento a respeito dos processos da natureza. Cada material é aproveitado em fluxos cíclicos, o que possibilita a trajetória “cradle to cradle” (do berço ao berço). É um movimento oposto à economia linear, na qual os resíduos são insumos para a fabricação de novos produtos.

 

Segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgada em 2019, mais de três quartos das indústrias (76,4%) consultadas adotam alguma prática da economia circular no Brasil, mas a maior parte não sabe que as iniciativas se enquadram nesse conceito.

 

O levantamento da entidade aponta que 70% das pessoas entrevistadas afirmaram não ter ouvido falar sobre economia circular antes da pesquisa, embora a maior parte já desempenhasse práticas relacionadas ao tema em suas empresas. Com o esclarecimento do que se trata, ao fim do questionário, 88,2% avaliaram a economia circular como importante ou muito importante para a indústria brasileira.

 

Para a CNI, a indústria nacional tem avançado em práticas como o reúso de água, a reciclagem de materiais e a logística reversa. A pesquisa indica que 60% das empresas entendem que as práticas de economia circular podem contribuir para a geração de empregos no próprio negócio e/ou na cadeia produtiva do setor. Para 73%, a transição para a economia circular deve ser uma responsabilidade compartilhada entre governo, empresas e consumidores.

 

A pesquisa revelou, ainda, que a maioria das empresas que adotou práticas de economia circular foi motivada pela busca por maior eficiência operacional, com 47,3% das respostas. Na sequência, aparece como razão a oportunidade de novos negócios, com 22,6%.

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