Autor: Nicolau Sevcenko
Editora: Unesp
A Revolta da Vacina
por Carlos Alberto Pacheco
Em um mesmo ponto da história, no ano de 1904, na politizada e complexa cidade do Rio de Janeiro, então ainda capital da recente república, atabalhoadamente proclamada, encontravam-se monarquistas contra republicanos – em sua maioria, estes eram militares radicais e adeptos da filosofia positivista, e aqueles conversadores extremistas. Também havia políticos e cientistas com dificuldades em dialogar com a população porque o Rio de Janeiro era uma cidade mundialmente conhecida como o “túmulo dos estrangeiros”, devido às suas condições sanitárias precárias na época.
A cidade estava passando por um rápido crescimento demográfico, mas era uma metrópole desordenada. A concentração de escravizados libertos, porém sem empregos, só agravou ainda mais as cruciantes condições sanitárias das então recentes favelas que haviam sido formadas pelo retorno dos soldados não devidamente remunerados pelos serviços prestados na Guerra de Canudos (1896-1897). Os cortiços proliferavam nas vielas insalubres da capital.
E é nesse crisol que se desenvolveu a Revolta da Vacina, em 1904. Esse tema foi muito bem explorado por Nicolau Sevcenko, renomado historiador e professor brasileiro, que, na obra A Revolta da Vacina (Editora Unesp), se debruçou sobre esse acontecimento, um dos episódios mais marcantes da história do Brasil ocorrido no início do século XX. Publicada originalmente em 1993, essa obra oferece ao leitor uma análise profunda e abrangente desse acontecimento histórico, explorando suas complexas ramificações sociais, políticas e culturais.
O livro A Revolta da Vacina, dividido em capítulos meticulosamente organizados, traça um panorama histórico do contexto em que a Revolta da Vacina teve origem. O autor começa o livro contextualizando a situação da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, sob o governo do então presidente da República, o paulista Rodrigues Alves, cujo objetivo era elevar o nível da capital nacional ao mesmo nível de algumas capitais europeias.
A urbanização desenfreada e violenta que inundou de forma avassaladora a cidade do Rio de Janeiro foi fortemente destacada no relato de Sevcenko no livro. Conduzida pelo então prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, a urbanização da cidade foi realizada mediante o despejo de várias famílias de suas propriedades, localizadas na região central do Rio de Janeiro, que foram precariamente indenizadas, o que gerou um difuso descontentamento com a classe política. As pessoas bradavam nas ruas, os jornais vociferavam palavras duras contra o mal realizado planejamento da urbanização do Rio de Janeiro. Nesse cenário, a introdução da campanha de vacinação obrigatória contra a varíola feita de forma tão agressiva quanto a reforma urbana e que fora planejada pelo dr. Oswaldo Cruz, então diretor-geral de Saúde Pública do Instituto Soroterápico Federal, desencadeou uma série de tensões e conflitos na cidade do Rio de Janeiro, que culminaram na revolta popular conhecida como Revolta da Vacina, convulsionando toda a sociedade local.
Sevcenko apresenta no livro uma análise detalhada das diferentes camadas sociais envolvidas no episódio. Ele destaca as vozes das classes marginalizadas e oprimidas, expondo como a imposição da vacinação foi percebida por elas como um afronte à liberdade pessoal e à dignidade da população mais carente. Muitos chefes de família não aceitavam a ideia de terem seus lares invadidos, na sua ausência, por agentes da área da saúde, em geral pessoas de reputação moral duvidosa, para “desnudarem” os braços de suas mães, esposas e filhas. Uma abordagem sensível do autor permite que os leitores compreendam uma variedade de motivações que estavam por trás da Revolta da Vacina, as quais incluíam não apenas o medo legítimo da vacina, bem como a resistência ao autoritarismo e à falta de participação da população carente nas decisões políticas.
Além disso, o autor explora o papel da imprensa e das elites intelectuais na construção da narrativa em torno da revolta. Ele demonstra como as vozes dos poderosos muitas vezes distorceram os eventos para desacreditar os revoltosos e como aqueles exigiram uma repressão brutal da revolta, por parte do governo. Ao analisar essa dinâmica, Sevcenko revela as estratégias utilizadas para marginalizar a revolta e perpetuar as desigualdades sociais, existentes ainda hoje. Tudo isso foi muito semelhante ao que ocorreu nos recentes anos em que houve a epidemia da covid-19.
Uma das contribuições mais interessantes do livro é sua análise da dimensão cultural e simbólica desse episódio da vida brasileira. Nele, o autor examina como os artistas e escritores da época, como Lima Barreto, Oswald de Andrade e João do Rio, incorporaram os eventos relacionados a essa revolta em suas obras, transmitindo as tensões e contradições da sociedade carioca da época. Sevcenko demonstra como essas representações culturais ajudaram a moldar a memória coletiva brasileira e a compreensão posterior dos brasileiros sobre no que consistiu a Revolta da Vacina.
A obra de Sevcenko concretiza uma análise mais densa da resposta do governo brasileiro à Revolta da Vacina e suas implicações a longo prazo. Ele revela como a repressão sangrenta da revolta, que foi conduzida em uma aparente pacificação temporária, deixou profundas cicatrizes na sociedade carioca. As consequências políticas e sociais da Revolta da Vacina reverberaram por décadas, influenciando como as políticas de saúde pública e as questões de cidadania eram abordadas no Brasil.
Em suma, A Revolta da Vacina, de Nicolau Sevcenko, é um livro envolvente e erudito que oferece uma análise fascinante de um episódio crucial da história do Brasil. Mediante uma abordagem multidisciplinar, o autor contextualiza os eventos relacionados à Revolta da Vacina, explora as diversas perspectivas das partes envolvidas nesse episódio e examina suas duras ramificações. A escrita eloquente de Sevcenko e sua pesquisa minuciosa fazem desse livro uma leitura indispensável para quem tem em vista compreender não apenas a Revolta da Vacina em si, mas também as complexas interações que ocorriam e ainda ocorrem entre saúde, política, cultura e sociedade.