Insumos Naturais em Sistemas de Liberação para Cosméticos

Lívia Rodrigues, Claudia Regina Elias Mansur
Instituto de Macromoléculas (IMA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro RJ, Brasil 
Cristal dos Santos Cerqueira Pinto Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Rio de Janeiro RJ, Brasil 
Elisabete Pereira dos Santos Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro RJ, Brasil 

Sistemas de Liberação de Ativos

Sistemas emulsionados

Nanopartículas lipídicas sólidas (NLS) e carreadores lípidicos nanoestruturados (CLN)

Polímeros naturais

Hidrogéis preparados com insumos naturais


Considerações Finais

 

A utilização de matérias-primas naturais é antiga na história da humanidade. Atualmente, diversas empresas cosméticas e farmacêuticas investem no uso desses insumos como forma de atrair consumidores cada vez mais conscientes.

Insumos naturais são utilizados no mercado cosmético e são facilmente identificados, nos rótulos de produtos para a pele e de produtos para os cabelos, pelos nomes dos ativos vegetais utilizados. Essa forma cria um apelo mercadológico, visando atingir um público cada vez maior. As finalidades do uso desses insumos são variadas, por exemplo: aumento da hidratação da pele e dos cabelos, aumento do brilho e da força capilar e redução da oleosidade cutânea.

Óleos vegetais, ceras e polímeros naturais estão cada vez mais presentes no cotidiano do consumidor. Esses insumos podem ser aplicados a diferentes sistemas de liberação, como os nanossistemas emulsionados, as nanopartículas poliméricas ou lipídicas (entre elas os carreadores lipídicos nanoestruturados) e os hidrogéis.32,35,51,58

Os óleos vegetais são componentes de muitas formulações devido às suas características antioxidantes e lubrificantes, sendo ricos em ácidos graxos com tamanhos de cadeia variáveis.11,13 Já as ceras naturais, que podem ser extraídas de fontes vegetais ou animais, apresentam composição variada e diferem dos óleos vegetais, embora contenham considerável quantidade de ácidos graxos. Óleos e ceras podem ser utilizados em sistemas de liberação de ativos, como emulsões, nanopartículas lipídicas sólidas (NLS) e em carreadores lipídicos nanoestruturados (CLN).3,5,9,12,20,24,26

Os polímeros de origem natural, assim como as ceras, podem ser provenientes de fonte animal ou vegetal. Eles apresentam boa biocompatibilidade e baixa toxicidade. São normalmente utilizados como espessantes, modificando as propriedades reológicas dos mais diversos sistemas de liberação de ativos. Em outra aplicação, podem ser utilizados na formulação de nanopartículas poliméricas. Todavia, alguns polímeros naturais podem também ser utilizados com outras funcionalidades, como ativo anti-idade e antioxidante. Entre os principais polímeros de origem natural utilizados em formulações cosméticas, destacam-se: goma xantana, quitina, quitosana, derivados da celulose, goma guar e ácido hialurônico.4,20,25,37,55

Diante desses aspectos, neste artigo será apresentado um levantamento bibliográfico sobre os principais óleos vegetais, ceras e polímeros naturais aplicados na indústria cosmética e os principais sistemas desenvolvidos com o emprego desses insumos. Cabe destacar que, apesar da relevante utilização dos polímeros naturais na preparação de nanopartículas poliméricas, neste trabalho serão abordadas suas aplicações nas formulações como espessantes, na forma de hidrogéis. Os hidrogéis também são utilizados nas fases externas de nanoemulsões e de nanopartículas lipídicas.
 

Sistemas de Liberação de Ativos

Neste tópico serão abordados os principais sistemas de liberação que estão sendo estudados para aplicação na indústria cosmética, focando na utilização dos insumos de origem natural, que compreendem emulsões e nanopartículas lipídicas.
 

Sistemas emulsionados

Uma emulsão é uma dispersão líquido-líquido composta de duas fases inicialmente imiscíveis na presença de um tensoativo.47 Os sistemas emulsionados podem ser classificados de acordo com a disposição das fases: óleo em água (O/A), quando a fase oleosa está dispersa na fase aquosa; água em óleo (A/O), quando a fase aquosa está dispersa na fase oleosa ou do tipo múltiplas, quando se tem três fases O/A/O; ou A/O/A (Figura 1).

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Tensoativos são moléculas anfifílicas utilizadas na formulação de emulsões. Os tensoativos mais polares tendem a formar sistemas O/A, enquanto os tensoativos mais apolares tendem a formar sistemas A/O. O uso de emulsões desperta interesse nos mais variados setores, como farmacêutico, cosmético, alimentício e agroquímico, devido às suas propriedades reológicas e à possibilidade de encapsulação de ativos.18,27,32

As emulsões também podem ser divididas, de acordo com o tamanho das gotas, em: macroemulsões, microemulsões e nanoemulsões. As macro e as nanoemulsões são bastante similares quanto à sua estabilidade: ambas são termodinamicamente instáveis. Entretanto, apresentam estabilidade cinética, podendo permanecer estáveis por longos períodos de tempo. Por outro lado, as microemulsões são termodinamicamente estáveis e são formadas de maneira espontânea, em proporções e condições específicas. Os três sistemas diferenciam-se devido ao tamanho das gotas dispersas. As macroemulsões apresentam diâmetro médio de gota acima de 1 μm, por isso refletem mais a luz, apresentando-se como sistemas opacos. Já as nanoemulsões e as microemulsões apresentam gotas em escala nanométrica, entre 100-500 nm, o que leva a uma aparência translúcida ou com baixa turbidez.15,31,32,39

Óleos vegetais são comumente utilizados em sistemas emulsionados devido ao seu poder antioxidante e lubrificante.11,14 Esses óleos são compostos majoritariamente de ácidos graxos com tamanho de cadeia variado, podendo ser insaturados ou saturados. Essas variações na estrutura de cada óleo permitem que sejam usados em uma variedade de aplicações. Em cosmética capilar, por exemplo, é desejável que o óleo seja de cadeia curta, com estrutura linear e sem insaturações, pois esses fatores levam ao aumento da capacidade de sua permeação nas camadas internas da fibra queratínica. Óleos como o de coco, o de semente de uva e o de farelo de arroz, por exemplo, têm sido utilizados tanto in natura quanto em sistemas emulsionados e nanopartículas para aplicações cosméticas.2,10,30,42

Embora os óleos vegetais possam ser utilizados in natura ou na fase externa da emulsão, isso pode levar à aceleração da degradação dos componentes dos óleos vegetais, devido a agentes externos. O quê também pode conferir à formulação um sensorial graxo, que não é desejável para uma formulação cosmética.

Por esses motivos, os componentes dos óleos vegetais são mais utilizados como fase interna. Além das propriedades conferidas pelos óleos vegetais, é comum a incorporação de outros ativos à fase interna, que podem agir em conjunto com esses óleos, aumentando suas propriedades antioxidantes ou fotoprotetoras, por exemplo.

Nesse contexto, Almeida e colaboradores (2009) utilizaram o óleo de uva e o de amêndoas para o preparo de nanoemulsões, incorporando benzofenona-3 (BZ-3), um filtro solar orgânico muito utilizado em formulações fotoprotetoras.3 Os autores verificaram que a a eficiência da encapsulação da BZ-3 fica em torno de 99,98±0,01% para ambos os óleos. A avaliação da fotoestabilidade da BZ-3 indicou que o processo de encapsulação do ativo reduziu sua degradação em até quatro vezes quando o ativo foi exposto à radiação ultravioleta por 168 horas. Essa proteção dos ativos é um dos principais atrativos para o uso desse tipo de sistema em formulações cosméticas, pois é necessário que o ativo seja estável por longos períodos de tempo sem perder sua eficácia.

Bernardi e colaboradores (2011) utilizaram óleo de farelo de arroz, rico em antioxidantes, para o preparo de nanoemulsões O/A utilizando o método de inversão de fases.5 Os autores obtiveram nanoemulsões estáveis com diâmetro de gota em torno de 70 nm, sendo esse tamanho de gota atrativo para a aplicação tópica, devido à sua maior facilidade de penetração na pele. De maneira geral, é desejável que ocorra aumento da absorção do produto na epiderme para todos os indivíduos, mas, especificamente, é bastante eficaz para indivíduos com problemas cutâneos, como a psoríase e a dermatite tópica. A Figura 2 apresenta o resultado do ensaio in vivo realizado após a aplicação do produto na pele de voluntários.

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Observa-se, na Figura 2, que houve aumento do conteúdo de água na pele tanto de pessoas saudáveis quanto de indivíduos com problema de pele (38% e 30%, respectivamente). Esse efeito foi atribuído à adesão das gotas da nanoemulsão à pele, formando um filme que impede a evaporação da água. Os autores do trabalho citado ressaltaram o benefício desse sistema à base de óleo de arroz, pois produtos comerciais convencionais com a finalidade de hidratar a pele geralmente aumentam a umidade apenas em torno de 20% e somente após 14 dias de uso.5

Assim como o óleo de farelo de arroz, o óleo de uva apresenta boas propriedades antioxidantes e teor elevado de vitamina E, o que é interessante para a indústria cosmética. Glampedaki e Dutschk (2014) utilizaram o óleo de semente de uva, vinho e uma resina obtida da espécie vegetal Pistacia lentiscus para formular emulsões estáveis e que poderiam ser utilizadas na indústria cosmética.12 Assim como o óleo de uva, o vinho apresenta substâncias antioxidantes em sua composição, já a resina vegetal apresenta os efeitos cicatrizante e bactericida.

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A partir da Tabela 1, observa-se que Glampedaki e Dutschk (2014) obtiveram um sistema emulsionado estável para as formulações com 5%, 10% e 20% (p/p) de vinho na fase aquosa. Comparando esses sistemas à emulsão sem vinho, observou-se que houve aumento da estabilidade, indicado pela menor variação do tamanho de gota ao longo do estudo. Sugere-se que o álcool contido no vinho tenha agido diminuindo a coalescência das gotas nos sistemas a que foi adicionado.13 A estabilidade dos sistemas é fator imprescindível para seu uso em formulações cosméticas.

Embora grande parte dos estudos apresente os óleos vegetais como fase oleosa de sistemas coloidais, Kim e Cho (2014) desenvolveram uma nanoemulsão à base de cera.20 Esses autores prepararam e estudaram as propriedades de uma nanoemulsão (O/A) utilizando a cera de candelila como fase oleosa. Assim como Bernardi e colaboradores (2011), Kim e Cho (2014) utilizaram o método de inversão de fases para a obtenção das nanoemulsões (Figura 3).21

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A temperatura de preparo das nanoemulsões influenciou no tamanho das gotas dispersas. A análise do diâmetro indicou que abaixo de 65ºC as nanoemulsões apresentaram tamanho médio de gotas de 1.500 nm. Na Figura 3, observa-se que quando a temperatura de preparo das nanoemulsões se encontra acima da temperatura de fusão da cera (entre 60ºC e 70ºC), as formulações estavam translúcidas, indicando a diminuição do diâmetro das gotas (o indicado seria entre 40 nm e 65 nm a partir do verificado por meio da técnica de espalhamento de luz). Esse fenômeno pode ser explicado pela diminuição da viscosidade e das forças coesivas, com o aumento da temperatura, o que favorece a emulsificação dos sistemas.21 Entretanto, com a diminuição da temperatura a cera voltaria ao estado sólido. Com isso, embora esses autores sugiram que esse sistema é uma nanoemulsão, em temperatura ambiente pode-se considerá-lo uma nanopartícula lipídica.
 

Nanopartículas lipídicas sólidas (NLS) e carreadores lípidicos nanoestruturados (CLN)

Ceras naturais são substâncias que, à temperatura ambiente, apresentam o comportamento de um sólido plástico e, quando são aquecidas, apresentam-se como fluidos de baixa viscosidade. Sua composição química é bastante complexa e variada, e essas ceras podem ser de origem natural (vegetal ou animal) ou mineral (derivadas de petróleo). As ceras de origem natural dividem-se em vegetais e animais e são suscetíveis à sazonalidade, fator que pode impactar as suas propriedades em uma formulação.9 As principais ceras naturais vegetais são a de carnaúba (temperatura de fusão a 84°C) e a de candelila (temperatura de fusão entre 60°C e 70°C) e, entre as ceras de origem animal, destaca-se a cera de abelhas (temperatura de fusão entre 62°C e 65°C).6,9,33,53,54

Ceras e óleos vegetais podem ser utilizados na formulação de nanopartículas lipídicas. A primeira geração dessas nanopartículas lipídicas é denominada nanopartículas lipídicas sólidas (NLS). Em sua formulação é empregado somente lipídio sólido, como cera ou manteiga. Esse tipo de sistema apresenta vantagens em relação a outros sistemas carreadores, como: proteção de ativos de forma mais eficiente, facilidade de produção em larga escala e aumento da penetração das partículas na pele (derme). Entretanto, o uso de lipídio sólido traz algumas desvantagens, como a cristalização e a expulsão do ativo encapsulado, levando a baixos níveis de encapsulação e a polimorfismos inesperados. Para solucionar essas limitações, foram desenvolvidos os carreadores lipídicos nanoestruturados (CLN), uma segunda geração de nanopartículas lipídicas que utiliza, em sua composição, misturas de lipídios líquidos e sólidos. Tensoativos e água também são utilizados para a obtenção dessas nanoestruturas.19,45,52

Os CLN podem ser classificados em três tipos (Figura 4). O Tipo I é chamado de cristal imperfeito, ao qual a adição de variados ácidos graxos e de lipídios sólidos resulta em uma matriz imperfeita que permite a acomodação de maior quantidade do ativo. O Tipo II, conhecido como amorfo, não apresenta estrutura cristalina, o que elimina a desvantagem da expulsão do ativo. O Tipo III ocorre quando o ativo tem maior afinidade com o lipídio líquido, gerando estruturas semelhantes a uma emulsão O/A/O.35,45

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Filtros solares orgânicos podem ser veiculados em nanopartículas lipídicas, visando o aumento da eficácia fotoprotetora. Esses filtros são classificados como absorvedores da radiação ultravioleta A (UVA), ultravioleta B (UVB) ou absorvedores de amplo espectro. Essa absorção da radiação UV, em comprimentos de onda específicos, depende da estrutura química da molécula do filtro solar orgânico.46

O tipo de arranjo conferido pelos CLN se torna interessante para a incorporação de maior concentração de filtros solares45 e possibilita a incorporação de outros ativos, como vitaminas e agentes antioxidantes. Além disso, a própria matriz lipídica atua como um filtro solar físico,57 uma vez que parte da radiação UV incidente passa a ser refletida pela superfície da matriz lipídica da nanopartícula.

Visando esses aspectos, Lacerda, Cerize e Ré (2011) utilizaram a cera de carnaúba como lipídio sólido para produzir CLN contendo BZ-3.26 A Tabela 2 apresenta os dados do diâmetro, da polidispersividade e da eficiência de encapsulação do BZ-3. Observa-se que sistemas estáveis foram obtidos, apresentando baixa polidispersividade e eficiência de encapsulação variável, de acordo com o teor do ativo encapsulado. Segundo esses autores, as duas formulações com maior eficiência de encapsulação apresentaram diâmetro médio abaixo de 300 nm, assim como ocorreu em outros estudos da literatura que visam oferecer sistemas mais eficazes para a indústria cosmética.

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Assim como a cera de carnaúba, a cera de abelhas pode ser utilizada para a produção de nanocarreadores lipídicos estruturados. Krasodomska e colaboradores (2016) utilizaram óleos de sementes de frutas (que seriam descartadas) para a formulação de produtos com potencial para a indústria cosmética, devido ao seu alto poder antioxidante.24 Os óleos de framboesa, amora, groselha preta, ameixa e morango foram utilizados como lipídios líquidos, e a cera de abelha como lipídio sólido. Como foi citado anteriormente, a matriz rígida dos CLN aumenta a proteção da fase interna. Essa afirmação pode ser confirmada com base nos dados da Tabela 3, indicando que todos os óleos apresentaram redução de mais de dez vezes no nível de peroxidação, após sua encapsulação em CLN. De acordo com esses autores, esse resultado mostra-se significativamente relevante para a área cosmética, indicando a possibilidade de encapsulação de ativos oleosos sem grandes perdas de suas propriedades.

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Polímeros naturais

O uso de polímeros naturais em cosméticos apresenta boas vantagens, como a biodegradabilidade, essencial para um consumo sustentável, e a biocompatibilidade, o que os torna muito vantajosos para uso em cosméticos e medicamentos, além de serem seguros e apresentarem baixa toxicidade. Em geral, esses polímeros apresentam baixo custo devido à sua grande disponibilidade na natureza. Embora existam vantagens atrativas para seu uso, é importante ressaltar algumas desvantagens, como a possibilidade de contaminação microbiana e por metais pesados, já que esses polímeros são obtidos da natureza, em um ambiente não controlado. A sazonalidade também é uma desvantagem para o uso desses polímeros, diferentemente da produção em laboratórios. “Na natureza não há padrões de qualidade”, o que pode levar os polímeros a terem propriedades diferentes. Alguns polímeros naturais apresentam também alto custo, o que pode aumentar o custo do produto final.56

Mahajan (2016) destacou a importância dos polímeros em produtos cosméticos. Nos cosméticos, os polímeros são utilizados com diferentes finalidades, entre as quais se destacam seus usos como: tensoativos, em shampoos e condicionadores; umectantes, em produtos para a modelagem do cabelo; e modificadores de propriedades reológicas, além de sua veiculação em tinturas.29 A Tabela 4 apresenta os polímeros naturais mais utilizados em formulações e suas aplicações.

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Hidrogéis preparados com insumos naturais

Um hidrogel é composto de um polímero hidrofílico com alta capacidade de absorção de água (mais de 20% de sua massa) que mantém a estrutura tridimensional. A habilidade de moléculas de diferentes tamanhos serem absorvidas e liberadas de sua estrutura torna os hidrogéis atrativos para ser aplicado nas áreas biomédica, farmacêutica e cosmética. Polímeros sintéticos e naturais podem ser utilizados na formulação de hidrogéis, sendo os principais polímeros naturais as gomas, o colágeno, o ácido hialurônico, o alginato e a quitosana.1,16,48

Os hidrogéis podem ser classificados em químicos ou físicos de acordo com o tipo de entrelaçamento das cadeias dos polímeros que os compõem (Figura 5). Os hidrogéis químicos são aqueles em que as cadeias poliméricas estão entrelaçadas por meio de ligações cruzadas covalentes. Em contrapartida, os hidrogéis físicos são aqueles em que as cadeias estão unidas por interações físicas, como ligações iônicas, ligações de hidrogênio ou forças hidrofóbicas.

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Os hidrogéis são comumente utilizados como espessantes nas mais variadas formulações cosméticas. Também podem ser utilizados como sistemas de liberação de ativos7 ou incorporando nanoemulsões e nanopartículas.19,50 A incorporação desses sistemas a bases galênicas, como os hidrogéis, tem a finalidade de viabilizar sua aplicação tópica

     - Goma xantana: é um polímero de origem animal obtido por meio da fermentação de bactérias. É bastante empregado como viscosificante em sistemas cosméticos (Figura 6).25,28

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Picard e colaboradores (2013) utilizaram diferentes polímeros hidrofílicos para analisar sua efetividade quanto às propriedades reológicas e mecânicas de emulsões, comparando diferentes polímeros naturais e sintéticos.41 Após a realização dos ensaios reológicos, esses autores observaram que as soluções dos polímeros sintéticos poli(ácido acrílico) e poliacrilamida apresentaram maiores valores de tensão de escoamento e maior viscosidade, devido à formação de géis verdadeiros. Isso não foi observado em relação às formulações à base de polímeros naturais. Entretanto, a solução de goma xantana apresentou valores altos de viscosidade aparente, resultado associado à estrutura semirrígida que suas moléculas adotam em água. Os testes evidenciaram que as emulsões preparadas com géis de polímeros sintéticos se apresentaram mais consistentes do que aquelas preparadas com polímeros naturais ou naturais modificados. Entretanto, as emulsões à base de goma xantana evidenciaram a habilidade desse polímero de aumentar a viscosidade do meio, mesmo sem a formação de géis verdadeiros.

Essa propriedade viscosificante faz com que a goma xantana seja amplamente utilizada em formulações cosméticas dos mais diversos tipos, como shampoos, condicionadores e cremes de tratamento. Desse modo, Li e colaboradores (2012) realizaram um estudo acerca das propriedades reológicas de uma mistura de goma xantana (XG) e um derivado catiônico de celulose (JR400).28 Esse polímero, também conhecido como poliquatérnio-10, tem ampla utilização em formulações devido à sua ação condicionante. De acordo com esses autores, a mistura entre XG e JR400 poderia produzir uma mistura com melhores propriedades espessantes, estabilizantes, entre outras.

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A Figura 7 apresenta o gráfico da variação módulo elástico (G’) e módulo viscoso (G”) da mistura XG/JR400. A partir da Figura 7, é possível observar a variação de G’ e de G” com a frequência em diferentes concentrações de JR400. Os autores observaram que, na faixa analisada no gráfico, as composições contendo goma xantana e a fração de JR400 (), variando entre 0 e 0,30, apresentaram comportamento de gel físico, com G’ superior a G”, resultado semelhante ao indicado por Picard e colaboradores (2013) em seu trabalho. Entretanto, na fração de 0,4 de JR400, a mistura somente apresentou esse comportamento acima da frequência de 0,5 Hz, ponto de cruzamento entre G’ e G”. Ademais, G’ e G” aumentaram à medida que encontrava-se entre 0-0,06 Hz e diminuíram quando  encontrava-se entre 0,06-0,40 Hz.

O primeiro comportamento foi associado à formação de redes tridimensionais, ou mesmo de estruturas de gel vindas da atração eletrostática, e de ligações de hidrogênio que se formaram entre os componentes da mistura. Já o segundo comportamento pode ser relacionado a uma destruição parcial dessa estrutura, devido à formação de agregados.28 Esse aumento da viscosidade associado à goma xantana torna interessante sua utilização em formulações que necessitam ter maior consistência, por exemplo, cremes de tratamento capilar, podendo, dessa forma, substituir os derivados de petróleo, como as parafinas, nessas formulações.

     - Quitina e quitosana: são polímeros naturais de origem animal e podem ser extraídos da casca de crustáceos. São amplamente utilizados em áreas como as de processamento de alimentos, gestão de resíduos, medicina, biotecnologia e farmácia, e em cosméticos (Figura 8).4,20

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Os hidrogéis são de grande interesse na área cosmética, por causa de seu alto poder de hidratação, que, juntamente com suas características oclusivas, melhoram a hidratação da pele. Boriwanwattanarak e colaboradores (2008) desenvolveram hidrogéis à base de quitosana e curcuminoides, e avaliaram a eficácia da liberação controlada dessas substâncias.7 A Figura 9 apresenta a morfologia dos hidrogéis com e sem curcuminoides.

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A partir da Figura 9A, observa-se que os hidrogéis que não contêm curcuminoides em sua composição apresentaram morfologia regular, sem presença de poros, diferentemente do hidrogel apresentado na Figura 9B, que se apresentou bastante poroso. De acordo com esses autores, a porosidade da matriz influenciou a taxa de liberação da curcumina no ensaio de liberação in vitro. Quanto maior for a porosidade da matriz, mais altas serão as taxas de liberação da curcumina, devido à maior área de contato na matriz polimérica. Em torno de 40% da curcumina presente no hidrogel foram liberados nos primeiros 30 minutos, e 80% do restante foram liberados nos 120 minutos seguintes. Esses autores também descreveram que existem dois tipos de liberação: uma rápida, na qual 0,74 μg/min foram liberados nos primeiros 15 minutos, e uma lenta, na qual 0,13 μg/min foram liberados entre 15 e 120 minutos. Dessa forma, foi possível concluir que, na formulação desenvolvida, a liberação controlada do ativo foi o mecanismo principal do sistema utilizando matriz polimérica.7

     - Derivados da celulose: são polímeros de origem vegetal e que apresentam baixa solubilidade em água. Por causa disso, a principal forma de uso dos polímeros da celulose se dá por meio de seus derivados (Figura 10).20,25

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Serrão e colaboradores (2018) estudaram a influência de diferentes polímeros usados como veículos cosméticos para tinturas capilares.44 Para a pesquisa foram preparadas diferentes colorações, sendo quatro delas à base de géis como veículos. São elas: uma formada por dois polímeros hidrofílicos sintéticos, o poliacrilato e o copolímero de ácido sulfônico acriloildimetiltaurato e vinilpirrolidona; e a outra por dois polímeros de origem natural, a hidroxietilcelulose (HEC) e a goma sclerotium. Assim como Picard e colaboradores (2018), aqueles autores observaram menores valores de viscosidade para polímeros naturais quando comparados a polímeros sintéticos. A viscosidade de formulações capilares é importante para aumentar a substantividade do produto na fibra capilar. A associação de polímeros naturais com outras substâncias, como é indicado no trabalho de Li e colaboradores (2012), poderia levar a valores de viscosidade semelhantes aos de polímeros sintéticos, melhorando a substantividade do produto.28,44

Zhou e colaboradores (2011) também utilizaram a HEC em seus estudos para a comparação dos efeitos de diferentes pré-tratamentos cosméticos sob dano de prancha térmica alisadora.59 A HEC também foi utilizada como espessante das formulações aplicadas nas mechas para estudo, além de ter sido estudado o efeito de tratamento na fibra utilizando esse polímero. Para a realização do presente trabalho, os pesquisadores utilizaram cinco copolímeros sintéticos e a HEC como polímero natural. O resultado da avaliação das propriedades térmicas dos polímeros por calorimetria exploratória diferencial (DSC) está na Tabela 5.

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Por meio dos dados da Tabela 5, observa-se que os valores da temperatura de desnaturação, Td , dos cabelos pré-tratados com os polímeros são mais altos do que os da Td dos cabelos que não receberam tratamento polimérico. Isso indica que houve proteção térmica ao se utilizar os polímeros e que essa proteção variou de acordo com os tipos de polímero utilizados. A HEC é um espessante bastante usado em formulações cosméticas, entretanto, assim como foi mostrado no trabalho de Serrão e colaboradores (2018), apresenta viscosidade mais baixa quando comparada à de polímeros sintéticos, tendência também verificada por Picard e colaboradores (2013). Desse modo, a temperatura de desnaturação é pouco influenciada quando se utiliza apenas a HEC, devido à sua baixa substantividade para a fibra capilar, e, consequentemente, à sua baixa capacidade de proteção térmica da fibra. No entanto, a associação da HEC a polímeros sintéticos confere proteção térmica às fibras capilares.41,44,59

A entalpia de desnaturação da proteína está relacionada à quantidade de energia necessária para a desnaturação da proteína helicoidal, que depende da integridade da fibra. Quanto maior for a variação de ΔH de perda, maior será o dano à fibra. Analisando a coluna referente a esse parâmetro, são observados valores menores quando são comparados o cabelo sem pré-tratamento e o cabelo com pré-tratamento polimérico.59 Desse modo, observa-se que alguns polímeros naturais apresentam propriedades viscosificantes menores que as de polímeros sintéticos. Entretanto, a associação de polímero naturais com outros polímeros pode levar ao aumento da viscosidade e de outras propriedades de viscosidade, já que a mudança na reologia do sistema pode favorecer a substantividade das formulações para a fibra.

     - Goma guar: é definida como um polissacarídeo de alta massa molar, muito utilizada em formulações cosméticas como emulsificante e espessante (Figura 11).20,25

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Venugopal e Abhilash (2010) realizaram um estudo sobre a cinética de hidratação e a reologia da goma guar.55 Também estudaram a variação da viscosidade intrínseca a medida que o pH era alterado, para isso foi utilizando viscosímetro de vidro de Ostwald. Foi observado que, no pH da água deionizada (6,4), o valor da viscosidade foi de 9,1495 dl/g. À medida que o pH se afastou da neutralidade, a viscosidade variou de forma não linear, apresentando-se menor tanto em meio ácido quanto em meio básico, o que pode ser indicativo da contração das cadeias poliméricas. Essa relação pode ser explicada pela hidrólise parcial dos polissacarídeos em meio ácido ou básico. Outra explicação para a redução da viscosidade com a diminuição do pH pode estar relacionada à mudança na estrutura molecular da água em meio ácido, uma vez que, segundo esses autores, isso afeta diretamente a interação água-goma e goma-goma: a protonação dos grupos hidroxila do polissacarídeo e das moléculas de água levaria a uma redução das ligações de hidrogênio intra e intermoleculares.

Algumas formulações cosméticas dependem do pH para sua eficácia. No caso das formulações cosméticas capilares, os condicionadores capilares apresentam pH ligeiramente ácido para auxiliar no fechamento e no alinhamento das cutículas. Por outro lado, as formulações para coloração apresentam pH alcalino, o que auxilia na abertura das cutículas, levando à entrada dos ativos na estrutura interna da fibra.40,43 Desse modo, para manter a substantividade das formulações utilizando a goma guar fora do pH 6,4, seria necessária a adição de outras substâncias às formulações, o que levaria ao aumento de sua viscosidade, como é indicado no estudo de Li e colaboradores (2012) e de Serrão e colaboradores (2018).

     - Ácido hialurônico (HA): esse ácido (Figura 12) é um polissacarídeo aniônico extraído das articulações de animais. É biocompatível, não tóxico e apresenta grande relevância nas indústrias cosmética, farmacêutica e biomédica.20,37

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Assim como outros polímeros naturais, o HA pode ser utilizado como hidrogel. Entretanto, o uso desse polímero como fase externa de nanoemulsões não é incomum. Kong e colaboradores (2011) e Kong e Park (2011) utilizaram o HA como fase contínua de nanoemulsões carreadoras de vitamina E. Os estudos indicam que esse tipo de sistema apresentou alta eficiência de encapsulação (acima de 90%) mantendo o diâmetro médio de gota em torno de 50 nm, o que beneficia a penetração das gotas na pele. Kong e colaboradores (2011) observaram ainda que a vitamina E teve boa permeação na pele quando nanoemulsionada, não conferindo irritação à pele.22,23 A característica gelificante do HA, bem como de outros polímeros naturais, é de grande importância em sistemas de liberação de ativos, como as emulsões e as nanopartículas, devido ao aumento do valor de escoamento, o que facilita a aplicação tópica.
 

Considerações Finais

O uso de insumos de origem natural tem ganhado espaço no segmento cosmético, pois tem numerosas vantagens. Dessa maneira, formulações contendo óleos vegetais, ceras e polímeros naturais constantemente são alvo de estudos.

Lipídios naturais, como óleos e ceras, são amplamente utilizados na formulação de sistemas emulsionados e de nanopartículas lipídicas. Os óleos vegetais destacam-se por seu potencial antioxidante, enquanto as ceras conferem rigidez às partículas lipídicas, tendo tanto esses óleos como essas ceras a capacidade de proteger ativos incorporados a esses sistemas.

Os polímeros naturais são bons espessantes, modificando as propriedades reológicas dos sistemas de interesse. Desse modo, podem ser utilizados tanto como bases galênicas dos sistemas supracitados como um sistema de liberação por si próprio, ou, ainda, como viscosificantes de diversas formulações cosméticas de uso tópico.

Dessa forma, o uso de produtos de origem natural em cosméticos apresenta crescente aplicação nas mais diversas formulações cosméticas, substituindo materiais sintéticos na produção de formulações cada vez biocompatíveis e eficazes.

 

Lívia Rodrigues é doutoranda no Instituto de Macromoléculas Professora Eloisa Mano - UFRJ. Mestre em Ciência e Tecnologia de Polímeros pelo mesmo Instituto. Atua nas áreas de nanotecnologia e desenvolvimento de cosméticos.

Cristal dos Santos Cerqueira Pinto é pesquisadora em Propriedade Industrial no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). É doutora em Ciência e Tecnologia de Polímeros pelo Instituto de Macromoléculas Professora Eloisa Mano, da UFRJ. Participa como coorientadora de mestrado e doutorado no programa de pós-graduação desse instituto, atuando nas áreas de propriedade industrial e de pesquisa, nanotecnologia e desenvolvimento de cosméticos.

Elisabete Pereira dos Santos é professora associada da Faculdade de Farmácia da UFRJ, responsável pela disciplina de Dermocosméticos. Participa dos programas de pós-graduação dessa instituição, atuando na área de desenvolvimento galênico de dermocosméticos e cosméticos.

Claudia Regina Elias Mansur é professora associada e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Macromoléculas Professora Eloisa Mano, da UFRJ. É pesquisadora 1D do CNPq, cientista do estado pela Faperj, e tem experiência nas áreas de polímeros e coloides aplicados na indústria de petróleo e no setor farmacêutico.

 

 

Este artigo foi publicado na revista Cosmetics & Toiletries Brasil digital 32(2): 2D-12D, 2020.

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