Novos Conceitos nas Regulações de Cosméticos

 

Robert Ross-Fichtner, Claire Robichaud, Layne L’Abbe, Dayna Lozon
Focal Point Research Inc., Mississauga, ON, Canadá

Histórico da Regulamentação de Cosméticos

Tecnologia Cruzada entre Categorias

Termos Antiquados colidem com a Realidade Moderna

Reforma Regulatória

Referências

artigo publicado na revista Cosmetics & Toiletries Brasil, Jan/Fev de 2017, Vol. 29 Nº1  (pág 56 a 58)

     Há alguns anos, uma reportagem mostrou que há uma lei vigente no estado de Dakota do Norte, nos Estados Unidos, que considera crime servir, em bares, cerveja e pretzels ao mesmo tempo.1 No estado de Missouri, nesse mesmo país, há uma lei antiga proibindo que alguém dirija em uma rodovia com um urso solto dentro do carro.1 Esses são exemplos de incontáveis leis promulgadas há algumas décadas e que, surpreendentemente, ainda estão vigentes.

     Igualmente, nos Estados Unidos, leis sobre cosméticos são antiquadas e lamentavelmente estão defasadas em relação à evolução da ciência, aos hábitos do consumidor e, principalmente, ao bom senso. Há grandes esforços para corrigir essa situação, mas será que isso é suficiente? A inovação constante vem gerando tecnologias cruzadas entre categorias, o que tem trazido muitos benefícios. Porém, a combinação de múltiplos benefícios em um mesmo frasco dificulta vender apenas “um cosmético” ao consumidor.

 

Histórico da Regulamentação de Cosméticos

     Promulgado em 1938, o U. S. Food Drug and Cosmetic Act é uma lei que regula os cosméticos nos Estados Unidos.2 Naquele ano, os estúdios cinematográficos MGM anunciavam que Judy Garland iria representar o papel de Dorothy no filme O mágico de Oz e a fábrica de automóveis Studebaker inaugurava uma nova unidade na cidade de Vernon, CA, e passaria a vender carros à população norte-americana — que contava então com apenas 130 milhões de habitantes.

     O Food and Drugs Act, no Canadá, é uma lei ainda mais antiga que a dos Estados Unidos, datando de 1920. Foi atualizado poucas vezes e o Canadá tem feito algumas inovações na regulamentação de cosméticos, como a hotlist (lista de substâncias proibidas ou de uso restrito em cosméticos) e o desenvolvimento do regulamento de produtos naturais para a saúde. Muitas vezes, olhamos para a Europa, onde a regulação de cosméticos vem tendo um crescimento explosivo.3 Mas, será que os regulamentos da Europa são, realmente, inovadores? A nosso ver, boa parte do mundo está trabalhando com a arquitetura do carro Studebaker em um mundo do carro Google.

     Nos tempos em que os legisladores estavam compilando as leis originais, era muito fácil perceber as diferenças entre cosméticos e medicamentos. Produtos como batons, rouge, pó compacto e perfumes ocupavam a maior parte do universo da categoria de cosméticos naqueles bons tempos. As drogas também eram bem definidas. A aspirina era a solução para uma dor de cabeça. Antibióticos foram a grande notícia da década e estavam evoluindo rapidamente como uma inovação que salvava vidas. Não era difícil, para os reguladores, traçar uma linha entre essas duas categorias de produtos.

     Considerando que as regulações, frequentemente, partem da mentalidade “O que pode dar errado? ”, os problemas com cosméticos eram limitados. Os cosméticos poderiam estar contaminados com algo indesejável, ou trazer informações enganosas ou dúbias nos rótulos. Esses problemas potenciais fizeram com que a U.S. Food and Drug Administration (FDA) criasse as já conhecidas terminologias

adultered (adulterado) e misbranded (mal rotulado), respectivamente.4 É interessante observar que as leis originais dos EUA e do Canadá não davam aos reguladores a possibilidade de retirar cosméticos do mercado, estabelecendo firmemente seu ponto de vista de que isso seria uma perda de tempo regulatória.4

     Na Segunda Guerra Mundial, presenciou- se uma grande evolução da Química. Esse avanço começou com os plásticos: a maioria das embalagens de cosméticos mudou de vidro para plástico, que muito mais leve que o vidro, além de inquebrável. 5 Mas a coisa “mágica” que iria encher o frasco ainda estava por acontecer. Nessa evolução foram criados produtos que dificilmente poderiam ter sido previstos no momento em que foram promulgadas as leis norte-americanas sobre cosméticos.

 

Tecnologia Cruzada entre Categorias

     A inovação constante da indústria de cosméticos deu origem ao que tem sido chamado tecnologia cruzada entre categorias. Os atuais consumidores buscam produtos que apresentem múltiplos benefícios, como hidratação, proteção solar, antienvelhecimento, redução de manchas e controle de oleosidade, tudo isso em um só produto. Claramente, os consumidores desejam o maior número de benefícios com menor número possível de produtos.6 Essa busca é especialmente prevalente nos produtos antienvelhecimento; 6 esses desejados produtos multifuncionais poupam tempo e dinheiro do consumidor.6 Contudo, tentar reunir tantos benefícios em um único frasco pode representar uma dificuldade para que o produto continue sendo ainda um cosmético. É um desafio vender ao consumidor algo que tecnicamente é apenas um cosmético sem poder fazer algum apelo com conotação de medicamento. Naturalmente, esse produto deveria ser regulado como medicamento.

 

Termos Antiquados colidem com a Realidade Moderna

     O problema real da atual regulação reside no uso de conceitos ultrapassados de “cosmético” e de “medicamento” no nível atual de desenvolvimento da ciência cosmética. Essa realidade está angustiando reguladores e a indústria, pois ambos se esforçam para compartimentalizar inovações que, na realidade, estão nascendo sem amparo das regulações em vigor. O fato é o seguinte: os termos “cosmético” e “medicamento” seguiram seus caminhos chegando até determinado ponto e já não condizem com o que acontece na indústria.

     Visitando as prateleiras de uma farmácia ou de uma loja de cosméticos, deparamos com um número absurdo de produtos que podem ser aplicados à pele. Uma arquitetura regulatória moderna precisa definir como reunir tudo isso em função de riscos e benefícios.7 A relação risco-benefício é o cerne de todos os esquemas regulatórios e o que o mundo vem defendendo ardorosamente neste mundo moderno e mutante dos cosméticos.7

     Examine a perspectiva histórica mostrada na Tabela 1, que traz uma lista comparativa de cosméticos de 1938 versus os de 2016, incluindo produtos que os autores já viram no decorrer de suas atividades profissionais. Atualmente, o uso do termo “ingrediente ativo” é comum na Cosmetologia.8 Não é raro vermos afirmações como “regula as funções orgânicas”, “promove a síntese”, “aumenta”, diminui, e “inibe a degradação”, tudo isso no contexto de ingredientes ativos de cosméticos. Pesquisando a literatura científica, percebe-se que boa parte da Cosmetologia envolve o conhecimento dos caminhos bioquímicos dos ingredientes ativos e de seus benefícios para a pele.8

     Infelizmente, a meta dos legisladores nos dias de hoje, é tentar “enfiar à força” cada novo produto dentro de categorias de 1938. Produtos com FPS são o grande exemplo desse desafio. Dependendo da jurisdição, esses produtos são cosméticos, ou são medicamentos, ou são cosméticos e medicamentos, ou são produtos naturais para a saúde, ou são de alguma outra categoria inventada na hora pela autoridade regulatória local.9 A realidade é que estamos lidando com um universo amplo ao qual daremos o nome de produtos topicamente aplicados à pele e aos cabelos (PTAPC). Assim temos cobertura para um grande leque de riscos e benefícios (Figura 1).

     Nas duas pontas do espectro temos incontáveis subcategorias de produtos tópicos. Precisamos decidir o exato lugar desses produtos nesse espectro contínuo, para encaixar produtos como depilador ácido 30%, protetores solares com FPS 50, produtos para acne, maquilagem permanente (injetada), cosméticos biologicamente ativos e muitos outros produtos tópicos inovadores e complexos. Além disso, o posicionamento do produto dentro desse espectro irá depender de subpopulações? Por exemplo, há fatores adicionais de riscos e benefícios para mulheres grávidas ou lactantes, homens, idosos, imunocomprometidos etc?

     Um esquema regulatório moderno e excelente, que verdadeiramente avalia riscos para uma categoria regulada é o dos dispositivos médicos. Os reguladores têm ampla concordância, no mundo todo, sobre como regulamentar esses produtos.10 Por exemplo, uma bandagem é considerada um produto médico classe I, seu risco é mínimo e seu benefício é pequeno; e um marca-passo cardíaco implantável é de um produto médico de classe III ou IV, dependendo da regulação, e seus riscos e benefícios são consideráveis. O mundo concorda com o sistema de qualidade ISO 13485 para produzir esses produtos, e podemos viajar pelo mundo todo falando a mesma linguagem.10 Uma harmonização desse tipo tem efeitos dramáticos no fluxo comercial e reduz de forma significativa custos e ineficiências. Precisamos dessa harmonização urgentemente na categoria de cosméticos.

 

Reforma Regulatória

     Tudo isso nos traz de volta o estado atual da regulação de cosméticos. Países como China e Brasil não veem os cosméticos como uma única categoria. A abordagem de suas regulações visa os produtos cosméticos de alto risco e exige um controle regulatório mais extensivo. Essa é uma visão inovadora, progressista das regulações. O Canadá acaba de lançar uma consulta sobre uma arquitetura regulatória na qual cosméticos, medicamentos OTC (que podem ser vendidos sem receita médica) e suplementos alimentares seriam considerados um grupo de “Produtos de Consumo para a Saúde”, usando uma abordagem que leva em consideração o risco para o consumidor.11

     Nos Estados Unidos, foram propostos dois novos projetos de lei para revisar as regulações de cosméticos. Note-se que esses projetos incluem um item que permite aos cosméticos declararem estrutura e função.12

     Essa é, verdadeiramente, uma revolução regulatória em cosméticos naquele país. Contudo, a maior parte das demais considerações desses dois projetos de lei, como registro obrigatório do produto e relatório de reações adversas, envolve o acréscimo de novos encargos à estrutura regulatória existente.12 São atributos absolutamente importantes, mas, francamente, já poderiam ter sido implantados há muito tempo.

     As mais recentes tentativas de revisar as regulações de cosméticos elaboradas em 1938 não fizeram mais do que “acrescentar ar-condicionado” ao velho automóvel Studebaker. O que realmente precisamos é repensar integralmente a categoria baseando-nos nos riscos e nos benefícios estabelecidos por muitas categorias inovadoras no mundo dos cosméticos. Se isso não for feito, o problema apenas será exacerbado, porque o ritmo de inovação da indústria continua muito acelerado.

     Precisamos examinar algumas das arquiteturas regulatórias inovadoras que estão sendo desenvolvidas em outras partes do mundo e permanecer de olhos abertos visando harmonizar abordagens globais para a regulação de produtos topicamente aplicados. Para chegarmos a esse ponto, precisamos concordar com os riscos e os benefícios de várias subcategorias desses produtos. Como isso será feito é incerto e, sem dúvida, altamente controverso. A necessidade de progredir, porém, é nossa única esperança para regulamentar devidamente essa categoria de produtos e impulsionar a indústria no sentido de promover uma harmonização global.

 

Referências

1. www.legalzoom.com/articles/

2. top-craziest-laws-still-on-the-books

3. www.fda.gov/AboutFDA/WhatWeDo/History/ProductRegulation/ucm132818.htm

4. https://ec.europa.eu/growth/sectors/cosmetics/

5. legislation_en

6. www.fda.gov/Cosmetics/GuidanceRegulation/LawsRegulations/ucm074248.htm

7. www.plasticsindustry.org/AboutPlastics/content.

8. cfm?ItemNumber=670

9. www.cosmeticsdesign-europe.com/Market-Trends/Trend-watching-at-the-in-cosmetics-Marketing-Trendspresentations

10. www.ispor.org/workpaper/risk_benefit_management_guo.pdf

11. www.prime-journal.com/the-science-behind-skincare/

12. www.hc-sc.gc.ca/dhp-mps/consultation/natur/sunscreenecransolaire-

13. eng.php

14. www.iso.org/obp/ui/#iso:std:iso:13485:ed-3:v1:en

15. http://healthycanadians.gc.ca/health-system-systemesante/

16. consultations/selfcare-autosoins/document-eng.php

17. www.congress.gov/114/bills/hr4075/BILLS-

18. 114hr4075ih.pdf

                                    Publicado originalmente em inglês, Cosmetics & Toiletries 131(9):16-19, 2016

 

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