Pele 3D

Erica Franquilino

Na indústria cosmética

artigo publicado na versão impressa da edição maio/junho de 2018 da revista Cosmetics & Toiletries Brasil

   Maior assertividade, redução de testes clínicos em humanos e a possibilidade de testar várias formulações – para identificar as mais seguras e eficazes – estão entre as vantagens apresentadas pela pele reconstruída em laboratório, também chamada de 3D ou equivalente.

   Nos últimos anos, empresas e universidades vêm se dedicando ao desenvolvimento da tecnologia para a produção desses materiais no país. Em 2019, entrará em vigor uma resolução do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que obriga fabricantes de cosméticos a adotarem métodos alternativos – validados e internacionalmente aceitos – ao uso de animais em testes para a criação de produtos.

   Em setembro de 2014, o Conselho listou 17 métodos alternativos para reduzir, substituir ou refinar o uso de animais em atividades de pesquisa, sendo dois deles a utilização de epiderme humana equivalente. A partir da publicação da lista no Diário Oficial da União, foi estabelecido o prazo de cinco anos para a substituição obrigatória do método original pelo alternativo. Logo, as empresas terão até setembro de 2019 para abolir totalmente os testes em animais, cujos métodos alternativos já foram reconhecidos.

   A pele 3D é desenvolvida a partir de células humanas e tem morfologia e fisiologia similares ao tecido humano. Além dos teste para cosméticos e produtos de higiene pessoal, esse tipo de material é um meio para a validação de novos medicamentos e para estudos sobre o mecanismo de ação de determinadas doenças, como o câncer de pele. A pele reconstruída também pode ser um recurso importante no tratamento de queimaduras e de algumas doenças dermatológicas. São muitas as possibilidades, razão pela qual, em várias partes do mundo, institutos de pesquisa vêm se dedicando ao estudo e desenvolvimento desse tipo de material.

   Na indústria cosmética, a L’Oréal tem reconstruído modelos de pele humana em laboratórios, para elaborar testes de segurança, desde 1979. Nos anos 1970, pesquisadores da companhia estudavam os mecanismos que levam a pele a se regenerar em um hospital para o tratamento de pessoas queimadas em Lyon, na França. As pesquisas levaram à criação de técnicas para a reconstrução da pele, a partir da doação de células humanas.

   No início dos anos 1980, um biólogo da companhia reconstruiu com sucesso uma epiderme humana. “Desde então, modelos de pele se tornaram gradativamente mais complexos e apresentaram características sempre mais próximas da pele humana em seu estado natural”, informa a empresa, que parou de testar seus produtos em animais em 1989.

  Atualmente, a multinacional lidera o mercado de pele artificial com os modelos Episkin e Skinethic, distribuídos em kits a pesquisadores e empresas. Outras companhias com norte-americana MatTek e o Instituto Fraunhofer IGB, na Alemanha. “Hoje, a L’Oréal possui uma dúzia de modelos de pele e outros tecidos (córnea, gengiva e mucosa pulmonar) reconstruídos”, diz a companhia. Todos os modelos permitem a avaliação de matérias-primas, ingredientes ativos e produtos acabados, em forma sólida, líquida, em pó, creme ou gel. O centro de pesquisa em Gerland, perto de Lyon, produz anualmente 130 mil unidades de tecido reconstruído.

   Desde 2012, a L’Oréal e o Instituto D’Or, no Rio de Janeiro, têm trabalhado juntos para explorar a cultura celular e a biologia de células-tronco. Em 2016, eles ampliaram o escopo dos trabalhos para a engenharia de tecidos e a reconstrução de pele humana. A parceria tem fins de pesquisa científica e estudo da tecnologia.

   Os modelos nacionais de pele humana reconstruída em laboratório começaram a ser desenvolvidos no início dos anos 2000. Em 2003, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) deu início a um projeto de reconstrução de pele humana em laboratório, coordenado pela bióloga Sylvia Stuchi Maria-Engler, docente em Citopatologia Clínica do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da FCF. Sylvia finalizou seu primeiro modelo de epiderme equivalente em 2006. Atualmente, a FCF capacita profissionais de empresas do setor cosmético interessadas em receber treinamento para o desenvolvimento da tecnologia.

   A pele reconstruída em laboratório no Brasil é proveniente de células humanas presentes em fragmentos de pele descartados de cirurgias plásticas. A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que diz respeito à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, proíbe o comércio de pele humana. Ela permite, portanto, a doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano – em vida ou após a morte.

   Reportagem publicada na Revista Fapesp em julho de 2016 informa que a legislação permite a importação desse tipo de material, embora o procedimento nem sempre seja viável. “Por ser material vivo e, portanto, perecível, os fragmentos de pele contidos nos kits têm validade de poucos dias. É muito comum enfrentarmos problemas na alfândega, o que, na prática, inviabiliza a importação”, afirmou a bióloga Sylvia à publicação. 

   A utilização de pele oriunda de cirurgias plásticas é feita com o consentimento do doador e precisa ter a aplicação aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), um colegiado multidisciplinar e independente, com papel consultivo e educativo, que deve existir nas instituições que realizam pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil.


Na indústria cosmética

   O Grupo Boticário foi o primeiro fabricante brasileiro de cosméticos a desenvolver um material equivalente à pele humana, que começou a ser utilizado em 2015. “Excluímos o uso de animais nos testes de cosméticos no ano 2000 e, desde então, nossos pesquisadores dedicam esforços e conhecimento na busca de parceiros e tecnologias que tragam segurança, agilidade e eficácia o tema na sociedade e estimular um ciclo virtuoso de pesquisa e desenvolvimento de métodos alternativos para este fim”, destaca Márcio Lorencini, gerente de pesquisa biomolecular do Grupo Boticário. 

   Nesse processo, a primeira aposta foram os testes in vitro de menor complexidade e, posteriormente, a pele 3D, inspirada em uma tecnologia já utilizada em outros países. “Como o processo de importação inviabilizava a aplicação no Brasil, a solução foi desenvolver um modelo próprio, de acordo com nossas necessidades e dentro dos nossos laboratórios, no Centro de P&D em São José do Pinhais, no Paraná”, comenta.

   Em laboratório, as células de tecidos descartados de cirurgias plásticas são isoladas, e a pele vai sendo formada, camada por camada, tal como a pele humana. O primeiro passo é a construção da derme, composta por fibroblastos, que são responsáveis pela produção de proteínas – como colágeno e elastina –, que dão firmeza e elasticidade à pele. A próxima camada a ser formada é a epiderme, composta por células denominadas queratinócitos, responsáveis pelas funções de barreira e proteção do corpo, e também por melanócitos, que dão coloração à pele.

   O material é utilizado tanto para a escolha de ingredientes que serão usados nas formulações, quanto para a avaliação de segurança dos produtos – cremes, loções e maquiagens. “Com essa tecnologia inovadora, é possível realizar vários testes num mesmo lote de pele reconstituída, que dura sete dias, em vez das 72 horas da pele in natura”, afirma. A pele 3D permite maior amplitude e assertividade nos testes, uma vez que é elaborada a partir de um pool de células de vários indivíduos. Além de substituir os testes em animais, a tecnologia “reduz o número de testes com humanos e confere maior fidelidade e confiabilidade aos testes dos produtos, com possibilidade de testar várias formulações e escolher a melhor em relação à eficácia”, aponta.

    A técnica permite usar células de diferentes idades e fototipos, possibilitando a elaboração de tecidos com características diferenciadas, como peles envelhecidas e com pigmentações variadas. “Com isso, é possível assegurar eficácia, por exemplo, para produtos antienvelhecimento direcionados para uma faixa etária específica. Células de pessoas de 60 anos podem ser utilizadas para comprovar atributos relacionados ao público dessa idade”, explica.

   Lorencini destaca a importância de uma rede colaborativa para o desenvolvimento de novas tecnologias em métodos alternativos e a disseminação desse conhecimento. “A decisão de pesquisar e produzir o modelo em nosso próprio laboratório incentivou o país a investir e apostar ainda mais nesta linha de pesquisa, que tem ganhado maior visibilidade e apoio entre as empresas, não apenas de nosso setor. Mas nossa motivação não para por aí. O sucesso da pele 3D nos estimulou a buscar novas parcerias, como no caso de Organs On Chips”,  ressalta.

   Desenvolvida por uma startup alemã, a tecnologia Organs On Chips começou a ser testada pelo grupo em 2016. “Ela complementa nossos modelos alternativos prévios, simulando órgãos ou sistemas vitais do corpo humano, conectados por meio de um modelo que simula a corrente sanguínea. Ou seja, os testes feitos com a pele 3D poderão tornar-se mais sofisticados, a ponto de melhorar a previsibilidade de respostas indesejadas na fase de testes, como reações alérgicas, aumentando a segurança e a qualidade dos produtos”,informa.
 
   Os modelos de pele reconstituída podem ter uma estrutura completa, formada por derme e epiderme, ou apenas pela epiderme. Samara Eberlin, farmacologista da Kosmoscience, ressalta que, nos modelos nos quais são usados apenas um tipo celular – os queratinócitos, que são os principais responsáveis pela formação da epiderme –, a pele recriada em laboratório “fica limtada a uma única camada do tecido cutâneo”.

   “Os modelos mais utilizados são aqueles elaborados apenas com os queratinócitos [...]. No modelo de pele humana ex vivo, que utilizamos na Kosmoscience, são realizados cortes padronizados dos fragmentos provenientes de cirurgia plástica, de tal forma que sejam incluídos no sistema-teste tanto a epiderme quanto a derme, garantindo assim uma melhor representação da variedade celular encontrada na pele humana, incluindo, além dos queratinócitos, também fibroblastos, melanócitos e células de Langerhans, dentre outras”, descreve.

   Ela acrescenta que, atualmente, os ensaios que mais utilizam a epiderme equivalente são os de segurança preconizados pela OECD, na qual estes modelos de pele estão validados. “Entretanto, para o modelo de pele humana ex vivo, um grande leque de oportunidades se abre, justamente por este modelo contemplar maior variedade de células. Neste sistema-teste, podemos realizar uma infinidade de ensaios referentes à eficácia de produtos de uso tópico, que contemplam desde testes referentes a barreira cutânea, pigmentação, resposta inflamatória e envelhecimento, até a possibilidade da indução em microambientes específicos, como exposição à radiação UV, radiação infravermelha, luz visível ou luz azul, ou mimetização de um ambiente de dermatite atópica, por exemplo.”

   Samara menciona que, além da faixa etária e determinados fototipos, os critérios de inclusão podem ser bastante específicos, dependendo do requisito do ensaio. “Se o produto for um creme para a área dos olhos, podemos determinar como critério de inclusão fragmentos de pele obtidos de bleferoplastia [cirurgia para correção de defeito palpebral]. Se quisermos avaliar a capacidade de um tônico capilar prevenir a queda do cabelo, podemos utilizar fragmentos de pele obtidos de ritidoplastia, tipo de cirurgia [para eliminação de rugas] na qual é comum obter uma faixa do escalpo, e avaliar esse microambiente após o tratamento com o produto”, ilustra.  

 

Matérias relacionadas:

Potencial do Mercado Teen

Erica Franquilino

Produtos Profissionais

Erica Franquilino

Novos Produtos